sexta-feira, julho 24, 2009

Lembranças...


Estava ali na cozinha agora, a descascar mandiocas para o almoço de amanhã e me veio a imagem do meu Vô Flôres, na cozinha da casa dele, lá em Cachoeira do Sul, a fazer a mesma coisa e ir explicando calmamente como devia ser feito.
Eu devia ter então uns cinco anos.
Nunca mais esqueci.
Lembro dele com um grande chapéu de palha, sentado em um desses banquinhos baixos de madeira, com uma faca muito afiada, a produzir aqueles rabichos de casca, como se fossem uma serpentina, inteiros, sem se romper no caminho.
Segundo ele, era preciso ter a ciência da coisa e uma faca muito boa.
Depois me falava das formigas de correição, olhando de soslaio para um carreiro delas que passava ao lado, na parte de baixo da escada que dava para o pátio. A simples menção me aviva a memória do nariz com um cheiro forte de pó de gafanhoto, que ele usava prá acabar com elas, não sem antes recomendar e recomendar para que a gente não pisasse ou tocasse. Funcionava por uns dias, o tal pó. Não tardava e elas tornavam a aparecer, em outro canto qualquer do pátio.
Eu ali sentada, os olhos muito arregalados, a tentar absorver um conhecimento que vinha de anos de prática e que me parecia importante, sem saber que um dia, aqui em casa, muitos anos depois e a tanta distância de Cachoeira, eu estaria a descascar mandiocas e a lembrar do meu avô. Ficava horas por ali, à volta dele, a fazer perguntas e mais perguntas, enquanto minhas tias Lourdes e Marlene davam o banho diário na minha avó, que já não atinava com a maior parte das coisas. Umas vezes eram elas, noutras também a tia Célia. Mas invariavelmente havia uma gritaria, porque ela, a minha avó Elba, lá bem no íntimo, devia achar que tinha coisas mais importantes a fazer do que tomar aqueles banhos intermináveis.
Eram as minhas férias da escola e geralmente ia passar na Vila Barcelos (hoje Bairro Santa Terezinha), onde moravam quase todos os parentes do meu pai. Em duas ou três quadras do bairro que, prá mim, era um mundo. Era um dia ou dois na casa de cada um, numa espécie de revesamento, prá que não houvesse ninguém melindrado. Ainda bem, sinal de que éramos queridos.
Bons tempos.
Há coisas que ficam, outras nem tanto.
Essas ficaram e são imagens muito nítidas, guardadas em algum canto, onde possam ser invocadas vez ou outra, por um gesto ou acontecimento simples.
Assim, sem muito pensar.
Tão bom.
Olha, vô, as mandiocas aqui em Portugal vêm da Costa Rica e com uma espécie de cera em volta, prá conservar mais tempo. Acabam por não conservar nada. E não são tão branquinhas como eram as da sua horta. Não se consegue descascar do jeito que o senhor me ensinou e tô prá dizer que nem cozinham bem.
Mas é o que temos.
................
Se ele pudesse ler o que aqui escrevo, na certa havia de rir muito e bem alto, como era do feitio dele.
Mas quem pode dizer?
A gente não sabe...
Deve andar aprontando as suas lá pelo paraíso.
Uma figuraça, o meu Vô Flôres.

2 comentários:

Graça Pereira disse...

Acho lindo esta viajem ao passado. Eu faço o mesmo no meu blog. O que vivemos é um tesouro que ningúem nos pode tirar. O teu caminho é lindo. Bj Graça

helo flores disse...

Obrigada pela tua atenção e carinho, Graça.
Estou lendo o teu blog e me deliciando com as coisas que contas.
Um abração.
Helô