sábado, novembro 20, 2010

Cá deste lado da Irlanda

A vida pulsa em Dublin.
Aliás, tudo aqui pulsa com muita energia.
A despeito das notícias de crise que correm pelo mundo todo, se não as tivéssemos lido e ouvido, não daríamos por ela.
As ruas cheias. Os pubs cheios. As lojas abarrotadas de gente.
Há cheiro de comida no ar e alegria no rosto das pessoas, apesar do frio.

E há fatos pitorescos, próprios dos irlandeses, penso eu.

Ontem estávamos em um pub, a saborear uma guinness e aproveitando o tempo prá colocar as conversas em dia com o Gabriel. A Rê tinha muito trabalho, desta vez não pode nos acompanhar.

Entra uma senhora, aparentando uns setenta e tais, ou quase oitenta. Muito magrinha, as maçãs do rosto rosadas e os olhos muito azuis. Senta ao nosso lado, muito simpática. Chama a moça - que aqui não se deve chamar com um aceno de braço ou por "moça!", como a gente está acostumado, e sim com um leve abanar de cabeça ou um sorriso discreto - e pede qualquer coisa, que imagino seja o que pede todos os dias, provavelmente à mesma hora do dia. Se calhar, pode ser somente nas sextas a tarde, o fato é que eles, do pub, parecem conhecê-la e muito.
Observo os movimentos da senhora e parece-me estar dentro de um filme. Tira o casaco, o cachecol e as luvas e os coloca os dois últimos dobrados em cima da mesa, a um canto. O casaco deposita ao lado, cuidadosamente arranjado para não amassar.
Espera muito convicta pelo pedido e, quando lhe é posta a tacinha à frente, com mais ou menos uns três dedos de uma bebida dourada, sorri agradecida e coloca uma moeda na mão da moça que a atendeu. Depois enfileira cuidadosamente as luvas,o cachecol, os óculos de sol, a taça, o troco em papel e a seguir as moedas empilhadas, tudo em cima da mesa.
Sorve a bebida com um prazer comedido e apanha uma saquetinha de açúcar no pote à frente, também milimetricamente arranjado por ela, em sequência, em cima da mesa.
Despeja um bocadinho do açúcar na mão e depois, com a língua, saboreia cada grãozinho.
Olha tudo com atenção. Sorri, às vezes.
Bebe muito devagarinho, deliciando-se com cada gole.
Volta a contar o dinheiro e empilhar as moedas, por tamanho, da maior à menor, de baixo para cima. E tem na mão uma nota de cinco euros, que dobra, enrola, desdobra e alisa. Depois de mais de hora a beber o mesmo tantinho daquilo que estou morrendo de curiosidade para saber o que é, e que por fim acaba, sorri, agora para o moço do balcão, que vem atendê-la cheio de simpatia. Ela faz um novo pedido, entrega-lhe a nota de cinco euros e põe-lhe dentro da mão uma moeda. Depois espera com paciência.
A taça de vidro que lhe traz o moço é uma taça normal, como a de vinho, mas agora é fumegante. Parece chá, mas tem cor de bebida, um dourado brilhante. E vem com uma daquelas palhetinhas de mexer, cor de laranja forte e com uma bola na ponta, como aquilo que se mexe em copos de drinks. Fico a pensar se é assim mesmo ou se ela - e aqui viajo - pede um chá e quer fazer parecer uma bebida.
Seja como for, volta a contar o dinheiro, agora com algumas moedas a mais, depois do troco que lhe trouxe o moço, e novamente a dispor em fila, arrumando o cachecol, as luvas, os óculos e o dinheiro. Mexe a bebida com elegância e leva o dobro do tempo para beber aquilo.
Ao final de tudo, coloca o cachecol, apanha os óculos, guarda as moedas numa bolsinha muito pequenina, ajeita a mesa e recolhe a taça e o guardanapo, mais as saquetinhas de açúcar vazias, caminha até o balcão com muita dificuldade, em passinhos curtos e desajeitados, e entrega ao moço, com outro sorriso.
Na rua chove. Ela para um pouco à porta, veste o casaco, arranja o cachecol, enquanto a acompanho com o olhar, pela vidraça da janela. O Arsénio ainda comenta que aquilo é só um aquecimento, que quando sair à chuva começará a andar desabalada tentando fugir dos pingos. Eu acho engraçada a observação, mas não tiro os olhos dela.
De fato, agora a senhora lá fora parece outra pessoa. A passos largos, rapidamente some no meio de um amontoado de gente que anda apressada debaixo dos seus guarda-chuvas.
Olho para a mesa ao lado, já há dois senhores a tirar os casacos e cachecóis, prontos a fazer o pedido.
No cantinho da mesa, uma moedinha de um cêntimo brilha, esquecida.

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