sexta-feira, outubro 22, 2010

São as tais energias de que falo.

Fatos assim não são muito comuns, embora eu tenha um histórico deles pela vida afora.
Acontecem.
Dois dias antes de eu viajar de volta prá Lisboa, no sábado, nos juntamos em Santiago prá comemorar o aniversário da guriazinha. Embora a Yasmin só fizesse anos no dia quinze, houve a ante-estréia no dia nove, porque aniversário acaba sendo todos os dias e dá gosto comemorar.
A certa altura, e isto é inevitável, porque cantam (e alguns tocam) o pai Dionathan, a vó Lolô, o vô Luís, a tia Carol, a mãe Raquel, o tio Rodrigo, a bisa Ilda, o amigo Paulo Reis e ela tem como um dos padrinhos o Mireski, a festa começou e acabou em cantoria.
A turma mais do que eclética, onde há música, os bons momentos são sempre garantidos.
E quando a coisa vira pro lado da latinidade, claro que os mais apreciadores acabam por se achar. Foi quando o Mireski me saiu com aquela, sem dizer mais nada: Yo pisaré las calles nuevamente de lo que fué Santiago ensangrentada...
É a tal energia de que falo.
Na tarde anterior eu andava com a Carol e a Diva a limpar o salão dos fundos, lá na casa da dona Ilda e do Chicão, prá organizar a festa. Elementar, ali é onde tudo acontece.
Dei com os discos de vinil, uma coleção que fomos fazendo através dos anos e que, por curiosidade, contempla o meu especial interesse pela música latina. Houve um tempo em que eu literalmente catava tudo, passando por Violeta Parra, Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui, Ema Junaro, Charly García, Sílvio Rodriguez, Pablo Milanés, o grupo Raíces de América, depois o Fito Paez e tantos outros. Limpei cuidadosamente as capas, os discos - os invernos judiam das nossas coisas - do mofo acumulado, com uma grande pena. Vontade de carregar comigo por onde ande, mas teria que providenciar um toca-discos prá poder rodar estas pérolas, porque não tenho um. Coloquei de um lado, em um lugar seco e limpo, separados dos demais. Também moram ali uma especial coleção da Joan Baez e os imortais do Chico Buarque. Levei um tempo naquilo, olhando capa por capa, revendo a história de cada um , onde comprei, quando. Essas coisas que a gente faz de vez em quando, porque há sempre em nós algo pendendo pro nostálgico. E parei naquele. As fotos do Sílvio Rodriguez e do Pablo Milanez muito antigas, o cabelão do Pablo e os seus oclinhos. Inconfundível e tudo o mais. Único.
E depois deste parêntese, volto à cena do Mireski, um músico santiaguense dos bons e de sabido bom gosto musical. Mas o gajo é de outra geração e me surpreende que lembrasse de cantar aquilo. Sinto uma felicidade especial nisso de identificar tempos e canções. Viro-me prá ele, escutando atenta, fico pensando em como é que pode, e não consigo esconder a surpresa boa. Ele canta a canção inteira, com luxo de pronúncia, depois me diz que ama o espanhol. Tento acompanhar nas partes que mais sei (e como isso me dá gosto!)e quando acaba, falo que esta ainda não é a mais bonita, que antes dela ainda tenho um gosto especial por Canción por la Unidad Latinoamericana. E consigo lembrar a ordem em que as duas estão no tal disco de que falei antes. É neste momento que me vem a idéia de presentear o Mireski, porque tenho certeza de que terá o cuidado que eu não consegui ter pelos meus discos mais queridos. E tenho maior certeza disso quando põe as mãos nele, porque ficou mesmo feliz e sinceramente agradecido. Ainda peço desculpas pelo cheiro de mofo, embora tenha uma secreta impressão de que isso não terá a menor importância prá ele. E vai embora feliz, levando o seu violão (e o disco).
Fim da parte um.
No avião de Porto Alegre para São Paulo, na segunda-feira, espera-me um assento bem no meio de uma banda de música sertaneja. Nem havia me acomodado, o rapaz ao lado me alcança um cd e diz: Este é prá você. Olho com atenção, pergunto o que tenho que pagar, ele diz que nada, que é presente. Fico contente. Não é sempre que se recebe algo assim, de graça. Agradeço. Na capa vejo a foto de dois rapazes e o nome Lincon e Luan. No canto superior, uma foto do Latino, dando conta da sua participação especial no cd. Depois fico sabendo que estou sentada ao lado do Eduardo, que é o produtor da banda e, entre perguntas e respostas, conta coisas sobre o grupo, o tempo de formação, o que cada um toca, onde fizeram shows no sul, de onde são. Trocamos impressões e eu confesso que a música sertaneja não é lá muito a minha praia, mas que gosto de música e isso faz com que ouça quase tudo, pelo menos uma vez. Ele pondera que esta não é bem a música sertaneja de raíz e sim o que chamam de música sertaneja universitária. Eu não conhecia, digo que não tinha ouvido falar, mas que vou ouvir com atenção as músicas todas, e a viagem segue. Do outro lado do corredor, embora praticamente ao meu lado, viaja um outro integrante da banda. Sujeito engraçado, enche as mãos de balas a cada vez que a aeromoça passa com a bandeja e diz que é pros moleques da favela onde mora. Ela ainda traz mais um grande punhado e entrega a ele, que guarda na mochila e conta que são muitas crianças e que elas ficam super felizes, que é uma festa quando ele chega. Todos rimos da cena.
Eu sabia que ia esquecer o nome do moço, queria anotar prá depois contar aqui. Na verdade, o apelido. Mas não importa, hora dessas lembro. Lembro do rosto e do momento, isso lembro. Numa das tréguas das conversas, eu distraída a olhar o sapato da aeromoça, nem sei porque, porque não ligo a sapatos, embora o Arsénio jure que eu tenho uma centena deles, o que é uma grande mentira, lembrando da cena do disco e a conversa com o Mireski sobre música latina e o gajo começa devagar e baixinho: yo pisaré las calles nuevamente de lo que fué Santiago ensangrentada...
Hã?
Eu falo: Não, não, não!
O moço se assusta e me pergunta: O que? Por que não?
Daí eu conto a ladainha toda de dois dias antes. Ele, prá completar o quadro, diz-me que adora a música latina, a música cubana, o Pablo Milanés e que, ainda esta não é a melhor e sim Canción por La Unidad Latinoamericana. Que é uma das letras mais bonitas que conhece e compara apenas com outra que fala sobre a Amazônia. Eu, incrédula, me dou conta de que nem sequer havia mencionado isso.
Fica impressionado, surpreso e contente.
E eu, então...fico sem ter o que dizer mais.

Foi ele que falou da energia. E eu acho que tem toda a razão.

Detalhe: Já ouvi o disco todo e achei muito bom. O Arsénio anda a ouví-lo no carro, todos os dias, quando vai pro trabalho. Sim, sim, este das canções sertanejas.

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