Não foi a falta de coragem, foi muito mais o receio de não conseguir expressar aqui com palavras exatas tudo aquilo que eu gostaria de dizer.
Mas ele merece que eu diga o que quer que seja, qualquer coisa que venha direto do coração, porque na certa estaria lendo isso agora, como sempre fez com tudo o que escrevi. Da mesma forma que eu nunca deixei de acompanhar seus passos, a despeito das distâncias e dos desencontros.
Era o meu guri.
Umas vezes rebelde, é certo.
Polêmico na essência.
Livre. Nunca aguentou amarras.
O meu guri mais novo. Meu pai, às vezes. Noutras, irmão. Parceiro incondicional de inventivas, companheiro de desafios malucos, mas sempre cheios de significado.
Amigo com quem sempre dividi sonhos, idéias e realizações. Mesmo agora, mesmo depois de cada um de nós termos seguido o nosso próprio caminho. Nunca, nada nos impediu de cultivar o vínculo eterno de cumplicidade que nos uniu em um dia de novembro de 1977.
Se fosse resumir em uma palavra (fosse isso possível), a palavra seria: único.
Mas uma vida não se resume.
Escreveu-me uma e somente uma carta. E esta sim, resumiu tudo o que poderia ter sido dito até o fim. Ainda há poucos dias encontrei esta carta e li repetidas vezes. Depois guardei assim, dobradinha em forma de flor, meio borboleta, do jeito como veio, duas folhas daqueles blocos pautados, de papel fino, quase transparente. Perfumada. A mesma letra que encontrei ontem em umas anotações, junto de uns discos de vinil que eram nossos, e que dizia muito da personalidade dele. Firme! Intensa como uma força da natureza, como bem define o nosso
amigo Guto Pinto.
Em tudo meteórico, em tudo absoluto, que meios termos nunca lhe serviram de rumo.
Desafiava os dias a serem capazes de lhe dar respaldo e lugar para todas as coisas sonhadas.
Faltava-lhe tempo, sobravam-lhe sonhos.
E estar feliz era estar no meio de todas as gentes que ele queria e que lhe queriam e que, de cada um, sabia o pouquinho mais importante.
Era movido pela paixão. Pelas pessoas, pelas idéias das pessoas, pelos sonhos dos outros, que acabavam por se confundir com os dele. E todos juntos formavam a sua grande família, com quem compartilhava tudo o que tinha, aquilo que pensava e sobretudo o seu tempo.
Amava profundamente, mas tinha dificuldade em expressar o amor em palavras ou manifestações de carinho usuais. Fazia-os em atos que, muitas das vezes nem eram percebidos.
Como todo o ser humano, tinha defeitos que nunca tentou esconder e que acabavam por se tornar irrelevantes diante do impacto imenso das suas qualidades.
Amava o futebol, não pelo futebol em si, mas pela possibilidade da convivência sadia e da peculiaridade de tornar todos iguais, sem quaisquer distinções.
Era competitivo, era.
Mas nunca sem um significado, nunca sem que tudo fizesse sentido.
Viveu a pleno.
Às vezes foi kamikaze.
Mas menos nunca lhe bastou e disso sabíamos bem.
Quando entrou para a vida pública, nós, eu e os filhos só pedimos a ele que nunca, em hipótese alguma, fugisse da sua essência, que era o que de mais lindo tinha. Mas nem precisava, nem ele iria conseguir, mesmo que o quisesse.
Era genuíno como poucos.
Talvez a pessoa mais autêntica de que já tive notícias.
E orgulhou-nos a todos com o seu trabalho, a sua conduta e o seu exemplo.
Ensinou-me muito. Amou a música que eu amava. Incentivou-me a cantar a minha alegria, que acabava enfim por ser a alegria dele. Por mim mesma, por ele e pelo meu pai, que me ensinou a cantar, quero isso cada vez mais. Vou cantar, sim. Mostrar o que me vai na alma. Sei que era o que ele queria que eu fizesse, porque sabia que assim eu era feliz.
Deu-me boas lições de solidariedade, de despreendimento e de desapego. Muitas das coisas que hoje faço são inspiração do que de mais bonito vi nele. Tornei-me melhor. E agradeço imensamente por isso.
Em troca, ensinei-lhe a amar a lua, que ele ensinou muitas outras pessoas a amar também.
Certamente, o fato de perder toda esta referência, a possibilidade do convívio, ainda que à distância, de ouvir a voz, de ver, de manter o contato, o vínculo, a amizade verdadeira e a parceria incondicional, são uma pena dura demais para mim e para todos que o amavam pelo simples fato de ele ser quem ele era e como era: simples e verdadeiro.
Resta tentar pensar, ainda que com o coração dilacerado pela tristeza da perda, que em algum lugar muito especial, ele estará profundamente envolvido em uma nova missão, tão ou mais importante do que a que cumpriu entre nós, onde ele seja realmente imprescindível.
Só assim nosso coração ficará em paz.
Meu menino, fizeste profunda diferença neste mundo e para todos nós.
É lindo olhar tudo o que construímos juntos e lembrar da forma como tudo foi feito. Tivemos a nossa caminhada com os olhos na mesma direção. E me fizeste ver o real valor da liberdade. Podes ter a certeza de que sempre te compreendi. E pelas coisas não tão boas, sempre te perdoei e tu também me perdoaste. O que ficou foi só o que foi bom. Sabes que é assim.
Desejo do mais fundo do meu coração que, estando onde estiveres, estejas sereno e verdadeiramente feliz.
Obrigada por cada segundo que nos dedicaste. Por cada olhar, por cada sorriso, por cada palavra e por cada gesto.
Obrigada por existires em nossas vidas.
Estarás comigo e com os nossos filhos para sempre.
Segue em paz, vai revolucionar outros mundos e leva contigo o nosso amor mais profundo.