quinta-feira, novembro 19, 2009

Cotidiano

A caminho do ponto de ônibus, passo muitas vezes junto à frente da Pastelaria Torp, que é quase uma vitrine de bolos, doces e guloseimas. Junto à esquina, vejo através do vidro um grupo de velhinhas a tomar o pequeno-almoço. Todas muito arrumadinhas, cabelos arranjadinhos, batem o ponto diariamente na pastelaria do Manel, que já trabalha lá desde que o Arsénio tinha os seus dezesseis anitos, o que me faz crer que sejam pelo menos uns trinta e quatro anos.
Noutro dia achei engraçado, tive pena de não estar com a câmera à mão para registrar o momento. As seis, todas bem sentadinhas - os lugares são os de costume, sempre os mesmos, pelo que pude ver - com as suas caixinhas verdes de medicamentos ao lado, todas absolutamente iguaizinhas. E era a hora de tomá-los, porque eram a seis com as caixinhas abertas, a mexerem lá dentro. Uma cena e tanto.
Aqui o pequeno-almoço é um acontecimento. As pessoas costumam encontrar-se no café e acabam por formar um grupo de frequentadores tradicionais, quase como uma família a encontrar-se todas as manhãs ou tardes. Gosto de ver.
Hoje pela manhã havia um fato novo. Um senhor estava à mesa com as velhinhas e, acreditem, tinha lá a sua caixinha verde de medicamentos, que penso ter sido oferecida pelos simpáticos atendentes da Farmácia Central, aqui da Bobadela. Aquilo deve ser como um ritual nas manhãs. O comprimido da pressão, o outro para o colesterol, talvez um diurético, algum para o coração.
A rotina da gente, depois que começa a depender desses minúsculos circulinhos para conseguir levar uma vida mais confortável, por assim dizer.
E digo isso porque também eu tenho cá a minha caixinha verde transparente, idêntica às deles, onde levo sempre o meu remedinho da pressão.

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No ponto não há ninguém mais além de um rapaz que leva uns fones enfiados nas orelhas, a ouvir um hip hop a todo o pau. E a falar sozinho ou cantarolar qualquer coisa que não percebo bem. Em transe, penso que nem chega a dar por mim.
Sento no banco que está vazio, olho para o painel eletrônico e vejo que faltam ainda doze minutos para a próxima camioneta.
A seguir chega uma rapariga de uns trinta e tais anos, o passo muito firme e pesado. O ar é angustiado. Não demoram cinco minutos e um carro para bruscamente ao lado, buzinando alto, a chamá-la. Ela vira o rosto para o outro lado e penso que vai começar a chorar. Mas acende um cigarro, as mãos trêmulas, enquanto o carro se afasta. Ainda vejo o condutor a sacudir a cabeça, parecendo contrariado e sem muita vontade de insistir. Ela mexe na bolsa e tira de lá uma cartela de comprimidos cor-de-rosa muito pequeninos. Engole um e logo acende outro cigarro. Penso vê-la a movimentar a boca, como a desabafar muito baixinho uma mágoa qualquer. Mexe-se nervosamente, o rosto abatido. Há raiva no olhar. E tristeza.
São pouco mais de oito e meia da manhã.
Ela faz uma ligação e diz que vai chegar um pouco atrasada a um lugar que penso ser onde trabalha. Despede-se e termina o cigarro a tragar fundo, olhando para o nada.
A cena me traz à cabeça um filme antigo.
Por alguns instantes sinto-me envolvida na situação e me assalta uma vontade incontrolável de mostrar-me solidária.
Mas limito-me a olhar a cena, acompanhando apenas, mesmo com as palavras quase a saltar da boca:
_ Não sofre tanto, não demora e vais ver que não vale a pena.

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Do outro lado da rua, passam as senhoras do bairro, vestidas de cinzentos e castanhos, puxando seus carrinhos quadriculados. Umas vão ao pão, outras devem ir à Praça. Algumas hão de ir ao talho, à farmácia, e outras poucas ao café, dar à língua, como se diz por aqui.
Uma e outra vem acompanhada do marido ou companheiro. Ele na frente, a uns cinco ou seis passos, como se tivesse pressa. Ela mais atrás, a resignação traduzida em um misto de altivez e dignidade.

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Assistir a vida é como ser platéia em múltiplos espetáculos. O interessante nisso é que este grande teatro que é o mundo leva uma peça nova a cada momento.

Se tivermos olhos de ver, vemos.

Por isso gosto tanto de sentar na fileira da frente, ali na turma do gargarejo.

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Um comentário:

Ruth Horie disse...

Nossa, que relato ... vc consegue 'enxergar' e anotar e descrever o cotidiano, de uma forma tão real ... me lembrou um pouco o Aluisio Azevedo em "O cortiço".

Tanto em fotos como nos textos, o seu talento é ímpar. Ainda hei de ter o prazer de dizer que sou amiga da Helô, a ecritora e fotógrafa brasileira que faz sucesso em Portugal e no mundo.

Beijos!